O (Des)Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

O Acordo Ortográfico (AO90) é muito mais grave e lesivo à língua portuguesa do que imaginam aqueles que não puderam ainda deter-se sobre o assunto.

Não se trata aqui de mera reação “ao novo”, que neste caso nem novo é, nem de mero repúdio de linguistas, escritores, tradutores, professores. O AO não cumpre de forma alguma a função de unificar a ortografia da língua portuguesa, pelo contrário introduz múltiplas grafias, regras artificiosas, inconsistências, etc. E sobretudo, não é legítimo!

Transcrevo aqui uma contribuição dada pelo jurista Ivo Miguel Barroso a um dos fóruns de discussão do Proz e que resume grande parte da complexidade e dos graves problemas do AO.

A disortografia do velho “Acordo Ortográfico” de 1990 

Centro-me nas questões linguísticas.

 Preliminares: o AO90 é uma cópia mitigada do AO86, que seguia o Projecto de AO de 1975

 O Anexo I do AO90 é uma versão mitigada do AO86, que foi o antecessor directo do AO90.

 O Projecto de bases de 1986 encontra as suas raízes textuais no Projecto de AO de 1975, negociado entre 1971 e 1975, na sequência de um Simpósio, realizado em Coimbra, no ano de 1967[3].

 O AO90 conserva várias disposições do AO86 e, no que inova, agrava alguns dos muitos problemas do seu antecessor[4].

 Portanto, o AO90 não contém uma “nova” ortografia (“que é tudo menos ORTO-gráfica”[5]), pois tem 39 anos; ou, contando desde o início das negociações – iniciadas em 1971 – do Projecto de AO de 1975, até ao momento, 43 anos (!).

 Entretanto, muitas inovações e descobertas foram feitas e divulgadas no domínio da Linguística.

 O Anexo I do AO90, que contém as 21 Bases da “reforma”, é, pois, materialmente, um velho produto totalmente desactualizado.

 O exposto explica porque é que o Anexo I do AO90, que contém as Bases do AO90, foi negociado apenas numa semana: é muito simples: manteve-se o que se pôde do AO86 (incluindo os próprios exemplos) e eliminou-se o que era mais polémico (designadamente a abolição dos acentos); aumentou-se as facultatividades.

“Não há nenhum argumento de carácter linguístico, pedagógico e cultural que justifique a adopção de mais uma reforma ortográfica em Portugal”[7], quanto mais de uma reforma tão profunda como a do AO90.

 A reforma do AO90 “não só não resolve os problemas existentes, como cria problemas novos.”[8].

 Parafraseando o Professor, linguista e filólogo ANTÓNIO EMILIANO[9], “O Acordo Ortográfico é um monumento de incompetência e ignorância”[10], “um desastre”[11], produto de “indigência intelectual”[12] de “inépcia científica”[13], e de “completa insensatez”[14].

 1.1. O AO90 pretende uma aproximação da escrita à fala.

 Trata-se de “um argumento absurdo e ignorante, que nenhum linguista sério pode invocar, e que pressupõe uma concepção datada e errada da relação entre escrituralidade e oralidade”[15]. Com efeito, reitere-se, “a ortografia é algo radicalmente distinto da transcrição fonética”[16].

 1.2. Todavia, em rigor, o AO não consagra o “critério fonético”, mas uma realidade diversa, com a qual confunde: o “critério da pronúncia”[17].

 Ora, a pronúncia de cada palavra é contingencial, variando de país para país, de região para região, de pessoa para pessoa e mesmo no âmbito das pronúncias de cada falante.

 O “critério da pronúncia”, consagrado no AO90, obriga a um exercício grosseiro, de uma pessoa ser obrigada a pronunciar a palavra (“prolação”), para saber como se escreve uma determinada palavra.

 Ora, “a ortografia situa-se, ou releva de, um ‘plano linguístico abstracto’, que não é, certamente, o da prolação”[18].

 O “critério da pronúncia”, de muito duvidosa base científica, é, como se disse, de muito difícil (quando não impossível) “aplicação”.

1.3. A grafia do AO90 está a adulterar a forma como os Portugueses pronunciam. Já ouvimos dizer “detêto” (e não “detecto”), e “fâtura” (e não “factura”) – temos a tendência para fechar ou emudecer os sons (fechar as vogais), que se iria agravar.

 1.4. O AO90 não significa uma evolução “natural” da língua.

 1.5. A supressão das consoantes “mudas” “c” e “p” não tem em conta a fonologia do Português europeu. Esta supressão cria problemas novos: i) o aumento das palavras homógrafas; ii) aumento da potencial homofonia por influência da grafia na pronunciação (v. g., “intercessão” – “intersecção” – “interce[c]ção” – “interce[p]ção”); iii) perder-se-á a indicação gráfica e visual do parentesco lexical e semântico entre palavras da mesma família de palavras (“infe[c]cão” – infeccioso; “Egi[p]to” – “egípcios”); iv) erros de “acordês”; v) aumento das diferenças gráficas entre o Português europeu e o Português do Brasil, devido à “aplicação” do Lince e de outros “instrumentos”; vi) importação de expressões alegadamente atribuídas ao Português do Brasil; vii) erros de Português.

 1.6. O AO90 não contém uma “nova ortografia” (v. acima), mas desactualizada.

 Entretanto, muitas inovações e descobertas foram feitas e divulgadas no domínio da Linguística.

 O AO90 amplificou as facultatividades e eliminou algumas das regras que pareceram mais aberrantes.

 1.7. O AO90 não “unifica” a ortografia do Português europeu e do Português do Brasil, ao estabelecer as facultatividades irrestritamente, regras artificiosas, que não contribuem para “unificar” a ortografia, bem pelo contrário. Com efeito, “‘multiplicar a diversidade não é unificar; é apenas multiplicar a diversidade’”[22].

As facultatividades (nas consoantes “mudas”, na acentuação e na utilização de maiúsculas ou minúsculas) são muito perniciosas, pois pulverizam a ortografia em multigrafias entre os vários países lusófonos, em multigrafias regionais e em multigrafias pessoais (de cada escrevente individual escrever, a seu bel-prazer, a “sua” “ortografia”, “ao gosto e ignorância de cada um”[23]).

 1.7.1. As facultatividades tornam possível que expressões com várias palavras sejam grafadas de múltiplas formas: por ex., “Rua de Santo António” terá 4 formas admissíveis de ortografia. Se a ela somarmos a grafia brasileira “Antônio”, teremos 8 formas diversas de grafar uma mesma expressão complexa[24]. A expressão “Electrotecnia e Electrónica” – designação de um curso, disciplina e área do saber – poderá ser escrita de 32 maneiras diferentes[25] (!!), sem que o AO ofereça qualquer critério normativo[26].

 Qualquer uma destas formas está correcta do ponto de vista do AO90[27].

 As grafias multiformes tornam o procedimento rotineiro de correcção ortográfica num autêntico “pesadelo para qualquer utilizador da Língua”[28].

 As facultatividades destroem o conceito normativo de ortografia[29]. Nunca foram consagradas em qualquer reforma do Mundo e implicam “uma regressão de cerca de 300 anos”[30].

 Os efeitos das inúmeras facultatividades gráficas são especialmente “devastadores” no âmbito do ensino da ortografia[31], gerando o caos generalizado nas escolas[32]. Para corrigir uma prova de Língua Portuguesa, cada Professor terá de conhecer e memorizar todas as grafias possíveis, para determinar o que está certo e errado[33].

 As facultatividades, dando todas as formas da pronúncia como correctas, implicam um esforço titânico de aprendizagem[34].

 O impacto da multigrafia do Português “na estabilidade e integridade dos vocabulários e terminologias científicas de especialidade, nomeadamente de áreas científicas e tecnológicas” será, previsivelmente, catastrófico[35].

 1.7.2. Mesmo admitindo o contrário, a alegada “unificação” ao nível da ortografia — que o AO90 não promove em larga medida — não se afigura necessária:

 Os aspectos do léxico (por exemplo, “pastelaria” (Portugal) – “lanchonete” (Brasil)), da sintaxe, da morfossintaxe e da semântica (palavras que têm significados distintos) mantêm-se diferentes, em ambas as variantes do Português (de Portugal e do Brasil).

 2. Aspectos da implementação

 2.1. A língua artificial que resulta do AO90 não é linear, permitindo várias interpretações, dado que está a ser transplantada para Portugal uma cultura (: a brasileira) e uma vertente ortográfica concebida num determinado País (: o Brasil), com as suas especificidades e idiossincrasias.

 Veja-se a forma atabalhoada, caótica, como o AO90 está a ser “aplicado”; com exemplos como “Exeto Universidade” (sic) (em lugar de “Excepto Universidade”, em dois sinais de trânsito na Cidade Universitária).

 2.2. O conversor ortográfico Lince, concebido pelo ILTEC, utilizado pela AR e por várias instituições, viola o AO90 (como está demonstrado no “Quadro de lemas” anexo à “Petição pela desvinculação…”[36]); pelo que é necessário retirá-lo de circulação.

 Também o “Vocabulário Ortográfico do Português”, feito igualmente pelo ILTEC, viola o AO90

 3. “Os fundamentos desta reforma não são de índole técnica e/ou científica, porque os mesmos são virtualmente inexistentes ou improcedentes”[1].

“Não havendo ‘a priori’ razão linguística, muito menos ortográfica”, a insustentabilidade da reforma[2], meramente baseada em critérios políticos, torna-se óbvia[3].

 Nunca é tarde para corrigir um erro, tanto mais um de tamanhas proporções como este.

 É óbvio que é possível reverter a situação de “aplicação” do AO90. Quanto mais cedo for feita, melhor para todos.

 4. Os “pecados originais”

 4.1. Não foram produzidos quaisquer estudos científicos por parte de quem fez a Reforma, baseados em dados fiáveis, para justificar os aspectos mais controversos da Reforma linguística realizada por esse Tratado internacional[4]. Designadamente, não se conhece: i) quais os grupos de escreventes e que sectores da sociedade serão mais afectados e de que forma[5]; ii) que incidência efectiva terá a reforma na expressão escrita e oral do Português europeu.

 4.2.As razões geo-políticas e económicas, avançadas para fundamentar o AO90, carecem de qualquer fundamentação científica, pertencendo à mera Retórica, não à Ciência.

 4.3. Não houve discussão pública sobre o AO em 1990/1991.

 No processo de 2008, os Pareceres dos Especialistas e das entidades, que se pronunciaram contra por unanimidade[6], foram conhecidos tardiamente e não foram tidos em conta.

 Em violação do art. 48.º, n.º 2, da Constituição, o Estado não prestou os esclarecimentos necessários sobre este assunto público.

 Para mais desenvolvimentos, v. “Acordo Ortográfico: nunca é tarde para corrigir um erro”, em http://www.publico.pt/cultura/noticia/acordo-ortografico-nunca-e-tarde-para-corrigir-um-erro-1626119?page=-1